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9 em Cada 10 Mulheres Autistas Já Foram Vítimas de Violência Sexual

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Por Marcia Pedralino e Tatiana Takeda

Ainda nos dias atuais, ser mulher ainda é uma condição que por si já implica um estado de vulnerabilidade perante a violência. A mulher com deficiência está ainda mais vulnerável. É o que mostra o Atlas da Violência 2021, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), juntamente com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

A partir de Estatísticas disponibilizadas pelo programa de Vigilância em Violência e Acidentes do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Viva/Sinan), do Ministério da Saúde, o estudo mostra que as mulheres com deficiência correspondem a 60% das vítimas de violência cometida contra pessoas com deficiência, sendo mais de 42,1% são casos de violência doméstica, ou seja, os principais algozes são familiares ou cuidadores que deveriam zelar pelo seu bem-estar.

As notificações são maiores para pessoas com deficiência intelectual e mulheres. Entre os 7,6 mil casos de violências contra pessoas com deficiência registrados pelo Viva/Sinan, no ano de 2019, 4.847 foram contra mulheres e 2.755 casos em homens. Na faixa de 30 a 39 anos, o registro de violência sexual contra mulheres é 20 vezes superior.

Os dados coletados representam as ocorrências de violência que foram notificadas, ou seja, dependeram da própria vítima procurar ou ser levada a um serviço de saúde e a violência ser identificada pelos profissionais de saúde. Os pesquisadores apontam que quando a própria vítima procura o serviço de saúde, muitas vezes ela pode ter maior dificuldade para perceber a situação de abuso.

Violência Sistêmica e Generalizada

 Infelizmente, esses dados revelam apenas a ponta muito pequena de um iceberg tenebroso.

Um estudo francês de 2022 (Cazalis et. al.) traz o dado estarrecedor de que nove em cada dez mulheres autistas já foram vítimas de violência sexual. A pesquisa entrevistou 225 mulheres autistas que responderam uma pergunta aberta e um questionário padronizado sobre vitimização em experiências sexuais. Um terço das vítimas relatou a agressão. Desses, 25% puderam fazer denúncia (n = 12) e/ou receber atendimento (n = 13). Para os 75% restantes, o relato não levou à ação.

Apesar da limitação do estudo baseado na participação voluntária das entrevistadas, as autoras ressaltam a consistência dos dados com a literatura sobre abuso sexual. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS, 2021) mostra de forma inequívoca que a violência sexual é sistêmica e que pessoas vulneráveis são os alvos preferidos dos abusadores.

 

Você Pode Não Ver a Deficiência de Uma Mulher Autista, Mas Ela é o Alvo Mais Fácil Para Criminosos Covardes.

Nesse sentido, embora o autismo implique em déficits na comunicação, interação social, e em muitos casos deficiência intelectual, que dificultam a identificação de intenções ocultas ou comportamentos inapropriados por parte de um abusador, o autismo não deve ser considerado o principal fator de abuso por si e sim, mais um fator de vulnerabilidade, que já é inerente à condição do gênero feminino.

Buscando mapear as vulnerabilidades adicionais à condição feminina, um levantamento do Banco Mundial (2019) sobre a violência contra mulheres e meninas com deficiência verificou que:

  1. A discriminação e a violência começam cedo: Meninas recém-nascidas com deficiência tem mais chances de serem sacrificadas do que meninos com deficiência.
  2. Jovens meninas com deficiência são excluídas de programas de saúde reprodutiva e educação sexual, razões pelas quais se tornam alvos fáceis de violência sexual e tem mais riscos de contrair uma gravidez indesejada.
  3. A reprodução na vida adulta é marcada por estigmas e concepções erradas, que juntamente com a falta de acessibilidade a serviços de saúde, autonomia pessoal limitada e pouca ou nenhuma educação sobre sexualidade, afastam mulheres com deficiência de vivenciar uma vida sexual saudável.
  4. Riscos aumentados de violência sexual são reais para mulheres com deficiência, mesmo durante a maturidade. A condição de gênero feminino é por si um risco à violência que é aprofundado pela deficiência inclusive para mulheres que adquirem condições de deficiência relacionadas à velhice, como Alzheimer e demência.

Desde o nascimento até a velhice a mulher está mais sujeita à violência, invariavelmente atrelada a questões culturais, estigmas, mitos e crenças capacitistas que cerceiam o desenvolvimento intelectual, social e econômico na infância, juventude e vida adulta e que por consequência limitam a formação de uma rede de apoio de confiança para a terceira idade.

 

A Violência Tem Que Parar

No mesmo estudo o Banco Mundial (2019) indica uma série de ações a serem trabalhadas de forma conjunta entre governos e sociedade civil para mudar esse cenário sistêmico de violência:

  1.  Fortalecimento de entidades governamentais para empreender ações de prevenção e resposta à violência de forma inclusiva;
  2.  Elaboração de serviços e programas inclusivos e acessíveis de proteção de mulheres e garotas com deficiência da violência, incluindo serviços de saúde, delegacias, abrigos e juizados;
  3.  Investimento no empoderamento de mulheres e garotas com deficiência para conhecer seus direitos sexuais e reprodutivos e como se proteger da violência.
  4.  Aprimorar a disponibilidade de dados sobre as diferentes formas de violência experienciadas pelas mulheres e garotas.
  5.  Investimento em intervenções baseadas em evidências que possam demonstrar a diminuição da incidência da violência e promover uma mudança sustentável nas vidas de mulheres e garotas com deficiência.
  6.  Incluir o tema da violência contra mulheres e garotas com deficiência de forma ativa e propositiva nos projetos de desenvolvimento.

Para além dessas ações, focadas na prevenção da violência de forma mais direta, a Organização Mundial da Saúde (2019) aponta a necessidade de se trabalhar na diminuição da desigualdade de gênero como raiz do problema da violência contra a mulher e também elaborou um framework baseado na palavra RESPECT que em português significa respeito, descrevendo sete ações estratégicas para mudar esse cenário.

Relationship skills strengthened

desenvolvimento de habilidades de relacionamento e tomadas de decisão.

Empowerment of women

Empoderamento social e econômico, incluindo assertividade, negociação e autoconfiança.

Services ensured

Garantia de serviços de saúde, segurança, justiça e serviços sociais para vítimas de violência.

Poverty reduced

Redução da pobreza para mulheres e famílias

Environments made safe

Criação de ambientes seguros em escolas, espaços públicos e de trabalho, entre outros.

Child and adolescent abuse prevented

Prevenção do abuso de crianças e adolescentes com ações de orientação das famílias.

Transformed attitudes, beliefs and norms

Transformação de atitudes, crenças e normas prejudiciais ao respeito à mulher. 

Certamente não se trata de uma missão fácil. O processo de superação da violência contra a mulher exige informação, controle e ações contínuas de todas as camadas sociais para acelerar uma transformação social, que ainda segue lenta, diante de noticiários que diariamente apontam assassinatos de mulheres e de muitas outras violências que permanecem no anonimato e na impunidade.

 

Comece Pelo Seu Entorno

Trata-se de uma luta longa e árdua que implica em uma mudança social e cultural profunda e urgente, especialmente quando se considera que a devastadora maioria parte dos casos de violência nunca são relatados e tampouco punidos, permitindo que abusadores estendam seus crimes por gerações. Isso é inaceitável.

O Brasil tem obtido avanços no combate à violência contra a mulher, tendo como força a Lei Maria da Penha (Lei no 11.340/2006), considerada pela ONU uma das três leis mais avançadas no mundo no enfrentamento à violência contra a mulher (Senado, 2022).

Para além disso, é preciso cobrar dos gestores públicos e das instituições e organizações em geral um compromisso total com essa luta. Individualmente, precisamos nos suprir de informação e disposição para fazer denúncias.

Ligue 180 Central de Atendimento à Mulher

Ligue 190 Polícia Militar

  

Referências:

CAZALIS, Fabienne et al. Evidence that nine autistic women out of 10 have been victims of Sexual Violence. Frontiers in Behavioral Neuroscience, 26 de abril de 2022. Disponível em: <https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fnbeh.2022.852203/full>. Acesso em 23/11/2022. 

CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/12/atlas-violencia-2021-v7.pdf>. Acesso em 15/11/2022.

KOISTINEN, Mari et al. Five facts to know about violence against women and girls with disabilities. World Bank Blogs, 2019. Disponível em:  <https://blogs.worldbank.org/sustainablecities/five-facts-know-about-violence-against-women-and-girls-disabilities>. Acesso em 15/11/2022.

LORRAN, Tácio. Mulheres com deficiência têm mais risco de serem vítimas de violência. Metrópoles, 11/11/2021. Disponível em: <https://www.metropoles.com/brasil/mulheres-com-deficiencia-tem-mais-risco-de-serem-vitimas-de-violencia> Acesso em 15/11/2022. 

SENADO. Observatório da Mulher contra a Violência. Disponível em: < https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/menu/entenda-a-violencia/a-violencia-contra-a-mulher> Acesso em: 15/11/2022.

THE WORLD BANK GROUP. Brief on violence against women and girls with disabilites. VAWGRE Resource Guide, 2019. Disponível em: <https://documents1.worldbank.org/curated/en/864511600841231218/pdf/Brief-on-Violence-Against-Women-and-Girls-with-Disabilities.pdf>. Acesso em: 10/11/2022. 

WORLD HEALTH ORGANIZATION. RESPECT women: Preventing violence against women. Geneva: 2019. Disponível em: <https://www.who.int/publications/i/item/WHO-RHR-18.19> Acesso em: 24/11/2022.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. Violence against woman prevalence estimates, 2018: global, regional and national prevalence for intimate partners violence against women and global and regional prevalence estimates for non-partner sexual violence against women. Geneva: 2021. Disponível em:  <https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/341337/9789240022256-eng.pdf?sequence=1>. Acesso em 24/11/2022.