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O peso invisível que a sociedade precisa enxergar

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Quem cuida da mãe que cuida?

Quando falamos em inclusão, normalmente pensamos nos direitos das crianças autistas. Mas raramente olhamos para quem está ao lado delas todos os dias, enfrentando desafios que vão além da rotina intensa de terapias, médicos e reuniões escolares. Estamos falando das mães de crianças autistas — mulheres que carregam, sozinhas, o peso de várias formas de pressão: familiar, escolar, social, profissional e emocional.

Pressão familiar: Quando a ignorância machuca

Frases como “Essa criança não fala porque é preguiçosa” ou “Ela só é mimada” não são apenas erradas — são cruéis. A falta de compreensão sobre o autismo dentro da própria família amplia o isolamento da mãe, que, ao invés de receber apoio, é constantemente culpabilizada. Essa pressão invisível mina sua confiança, desvaloriza sua experiência e dificulta o acesso a uma rede de apoio que deveria começar dentro de casa.

A ausência de parceria familiar tem consequências diretas na saúde mental das mães. Um estudo com 68 mães de crianças com autismo mostrou que mais da metade apresentou sinais significativos de sofrimento psicológico. Esse sofrimento estava associado a baixos níveis de apoio familiar e ao manejo de comportamentos desafiadores das crianças. O impacto foi ainda maior entre mães solo, que vivem em condições precárias de moradia ou que têm filhos meninos com autismo. O estudo também identificou demandas não atendidas, como falta de pausas no cuidado e carência de orientações práticas (Bromley et al., 2004).

A sobrecarga não vem só do autismo em si, mas da falta de uma rede que compartilhe responsabilidades e valide o esforço diário dessas mulheres.

Pressão escolar: O aluno “problema” e a mãe “culpada”

Em vez de adaptar o ensino, muitas escolas ainda responsabilizam os alunos por suas dificuldades e as mães por qualquer comportamento que fuja do padrão. Quando um educador diz “não temos condições de ensinar essa criança”, ele não apenas fere o direito da criança à educação inclusiva — ele transfere o peso da falha institucional para os ombros da mãe. Uma escola inclusiva não deveria empurrar mães para fora — mas acolhê-las como aliadas no processo de aprendizagem.

Além disso, a comunicação entre escola e família, que deveria ser uma ponte de apoio, muitas vezes se mostra falha e burocrática. Embora o uso da agenda escolar seja considerado pela escola como a principal forma de comunicação com as famílias, mães de crianças autistas relatam que essa forma é insuficiente. Professores também indicam que, mesmo ao envolver os pais em atividades da escola, os conteúdos compartilhados tendem a ser exclusivamente acadêmicos — deixando de lado aspectos emocionais, comportamentais e de adaptação que são centrais para o desenvolvimento das crianças com autismo. No contexto da inclusão, essa comunicação entre casa e escola tem se mostrado, na prática, ineficiente e pouco sensível às necessidades reais das famílias (Almeida, 2016).

Essa ausência de diálogo significativo amplia a sensação de exclusão e reforça a ideia de que a escola não está preparada para acolher, de fato, todas as infâncias.

Pressão social: A porta fechada para o mundo

O diagnóstico de autismo, muitas vezes, fecha portas para experiências simples e cotidianas. “Seu filho não pode frequentar esse espaço”, “Não temos estrutura para recebê-lo”, “O evento não é adequado” — são frases que violam a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) e colocam a criança e sua mãe à margem da convivência social.

Mas a exclusão não se resume à negativa formal. Muitas vezes, ela acontece nos olhares, nos sussurros, nas reações de espanto ou julgamento quando a criança se comporta de forma diferente em público. Um estudo qualitativo com 46 pais de crianças autistas revelou a complexidade emocional envolvida em sair com seus filhos para espaços públicos. Os pais, especialmente as mães, assumem um esforço constante de "trabalho emocional" — tentando adaptar o comportamento da criança ao ambiente e, ao mesmo tempo, minimizar o desconforto alheio. Com o tempo, desenvolvem habilidades específicas para lidar com essas situações. No entanto, essas competências também escondem o desgaste emocional silencioso que carregam a cada saída de casa (Ryan, 2010).

Essas mães não estão apenas cuidando — estão, o tempo todo, tentando mediar o mundo para que seus filhos caibam nele. E esse esforço, embora invisível, cobra um preço alto.

Pressão profissional: Entre a terapia e o trabalho

A maioria das mães de autistas abandona ou adapta sua carreira profissional para dar conta da intensa agenda de cuidados. E quando tentam permanecer no mercado de trabalho, enfrentam a incompreensão de colegas e gestores. Não é raro ouvir: “Você pode faltar menos?”, “Não tem ninguém que possa ficar com seu filho?” ou “A empresa não pode flexibilizar por causa disso”. A ausência de políticas de apoio torna essas mulheres duplamente sobrecarregadas e economicamente vulneráveis.

Um estudo publicado no The Social Science Journal analisou como as dificuldades no emprego afetam desproporcionalmente as mães de crianças com autismo, em comparação a outros cuidadores. A pesquisa concluiu que, em contextos onde políticas de proteção social e retorno ao trabalho são frágeis, os impactos negativos se concentram especialmente sobre as mães. A recomendação dos autores é clara: políticas públicas devem proteger a continuidade da carreira dessas mulheres e facilitar o retorno ao mercado de trabalho, especialmente nos momentos de maior vulnerabilidade familiar (Baker & Drapela, 2010).

A conciliação entre o cuidado e o trabalho não pode ser um dilema individual. Precisa ser uma responsabilidade compartilhada — por empresas, governos e pela sociedade.

A solidão no cuidado: A mãe como única responsável

A cultura ainda enxerga o cuidado como um “dom feminino”, reforçado por frases como “Mãe guerreira” ou “Quem pariu Mateus que embale”. Mas romantizar, ou minimizar o sofrimento dessas mulheres é outra forma de negligência. Ser mãe de uma criança autista exige força, sim — mas não deveria exigir heroísmo solitário.

Um estudo com 96 mães de adolescentes e adultos com autismo revelou que, em comparação com mães de filhos sem deficiência, essas mulheres passam significativamente mais tempo realizando tarefas domésticas e de cuidado, e têm menos tempo livre para lazer. Além disso, relataram níveis mais altos de cansaço, conflitos e estresse no dia a dia. Apesar disso, demonstraram níveis semelhantes de interações positivas e engajamento em atividades voluntárias. Esses dados reforçam a urgência de políticas de suporte às famílias, que não podem mais ser deixadas à margem da rede de cuidado (Smith et al., 2009).

Essas mães gerenciam agendas médicas, rotinas escolares, crises comportamentais, burocracias de laudos, relatórios e autorizações dos planos de saúde ou do SUS — tudo isso muitas vezes sem dormir, sem cuidar de si, sem apoio psicológico, sem pausa.

A maternidade que ninguém vê

Essas mães não precisam apenas de homenagens em datas comemorativas. Elas precisam de políticas públicas, de suporte institucional, de inclusão verdadeira, de espaços acolhedores e de redes comunitárias que funcionem. Precisam ser ouvidas, validadas, respeitadas e incluídas.

O que podemos fazer?

Se você é mãe de uma criança autista, exija ajuda — você não está sozinha. Você tem direito ao cuidado, ao descanso, à informação e à dignidade.

Se você convive com uma mãe de autista, ofereça mais do que conselhos: ofereça presença. Ouça sem julgar, estude sobre autismo, ofereça tempo, companhia, apoio real. Uma mensagem, uma visita, um gesto de cuidado pode fazer toda a diferença.

Na ADAPTE, a gente não romantiza a sobrevivência. A gente luta por sustentabilidade no cuidado.

A maternidade atípica não deveria ser uma sentença de solidão. Quando apoiamos uma mãe, estamos apoiando toda uma rede de cuidado que beneficia a criança autista e toda a sociedade. Que possamos transformar empatia em ação. E construir, juntos, uma cultura que acolhe — e não sobrecarrega — quem cuida.

Na ADAPTE, entendemos que o cuidado não deve ser solitário. Por isso, criamos o SUPERABA, um espaço contínuo de escuta, orientação profissional e apoio mútuo para quem vive a maternidade atípica. Sabemos que, diante de tantas pressões — sociais, escolares, familiares e profissionais — o que muitas mães precisam é de acolhimento real, informação acessível e um lugar seguro para compartilhar suas dores e descobertas com outras mulheres que vivem situações semelhantes. Empoderadas, essas mulheres conseguem aos poucos ir contagiando o restante da família e da sua rede social a perceber o autismo com mais naturalidade e empatia.  

O SUPERABA oferece encontros semanais com especialistas em autismo e Análise do Comportamento Aplicada (ABA), que orientam sobre práticas eficazes de ensino, além de promover rodas de conversa com outras mães, cuidadoras e profissionais da área. Ali, a escuta é ativa, o cuidado é coletivo e as decisões são construídas com empatia e ciência.

Mais do que um suporte técnico, o SUPERABA é uma rede de apoio emocional e prática, que ajuda a transformar sobrecarga em consciência, solidão em comunidade, e confusão em clareza. Porque ninguém deveria cuidar de alguém sozinho — e o cuidado de quem cuida também é prioridade.

Para saber mais, acesse: www.superaba.com.br 


Referências:

ALMEIDA, Tânia Santana de. Communication home - school in the context of inclusion people with TEA. 2016. 83 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2016.

Baker, D. L., & Drapela, L. A. (2010). Mostly the mother: Concentration of adverse employment effects on mothers of children with autism. The Social Science Journal, 47(3), 578–592. https://doi.org/10.1016/j.soscij.2010.01.013

Bromley, J., Hare, D. J., Davison, K., & Emerson, E. (2004). Mothers supporting children with autistic spectrum disorders. Autism, 8(4), 409–423. https://doi.org/10.1177/1362361304047224

Ryan, S. (2010). ‘Meltdowns’, surveillance and managing emotions; going out with children with autism. Health & Place, 16(5), 868–875. https://doi.org/10.1016/j.healthplace.2010.04.012

Smith, L. E., Hong, J., Seltzer, M. M., Greenberg, J. S., Almeida, D. M., & Bishop, S. L. (2009). Daily Experiences Among Mothers of Adolescents and Adults with Autism Spectrum Disorder. Journal of Autism and Developmental Disorders, 40(2), 167–178. https://doi.org/10.1007/s10803-009-0844-y